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Carol J. ADAMS. A política sexual da carne. Alaúde, 350 páginas.

Publicada originalmente em 1990, trata-se da obra mais conhecida da ativista feminista Carol Adams. A presente tradução para o português, realizada pela editora Alaúde em 2012, em uma edição comemorativa de 20 anos, teve a infelicidade de traduzir seu subtítulo original, “A feminist-vegetarian critical theory” por “A relação entre carnivorismo e a dominação masculina”, cometendo o erro que a autora criticará no decorrer da obra ao analisar os “textos desmembrados”. A tradução ignorou contexto e forçou um significado de modo a contribuir para o discurso dominante viril-carnista. Lamentável.

capa-resenha-a-politica-sexual-da-carne-carnivorismo-feminista-carol-adamsA obra que agora o público brasileiro tem em mãos, traz três prefácios da autora e uma apresentação de Nelly Mckay. Composta de nove capítulos distribuídos em três partes, um interessante epílogo e uma vasta bibliografia.

O início do prefácio à edição de vigésimo aniversário é de uma beleza estética típica das grandes utopias. Adams repete nesse prefácio alguns pontos que havia dito no anterior: que a razão de ser da obra é o ativismo. Ela é uma teoria engajada. Ou seja, sua práxis está em expor os problemas de uma sociedade sexista e especista e, não menos, oferecer soluções. As definições de A política sexual da carne são apresentadas e a autora conclama os leitores e leitoras a se juntarem aos ativistas que acreditam na mudança, no fim da cultura sexista, especista e belicosa.

No prefácio à edição de décimo aniversário, a autora conta como passou de feminista para feminista-vegetariana, como foi seus primeiros pensamentos de inclusão do vegetarianismo dentro do contexto feminista a partir das feministas do século XIX que já tinham feito essa conexão. Adams rebate a crítica de que sua obra é demasiadamente acadêmica, dizendo que ela mesma não é uma acadêmica e sim uma trabalhadora cultural.

“Sou grata pelo fato de que, com essa edição de décimo aniversário posso afirmar que este livro foi escrito por uma ativista. Sou uma ativista imersa na teoria, é verdade. Mas ainda assim sou uma ativista…”

Em resposta a ideia de que as causas sociais humanas devem ser priorizadas, Adams defende a intersecção, a inter-relação, “temos que por fim ao ativismo fragmentador”. Após dizer que compreende a preocupação das feministas que dizem que a defesa dos animais desvia o foco da luta que as mulheres travam contra o machismo, fica claro que a autora não concorda com essa hierarquia de lutas por justiça. Adams pontua que o vegetarianismo que ela trata na obra exclui não só as carnes, mas também laticínios e ovos. E propõe um novo conceito: “proteína feminilizada”, para se referir ao leite e os ovos, ou seja, proteína que vem de um corpo feminino. A conclusão desse prefácio é magnífica, pois ressalta a importância de ambas as lutas: o feminismo e o vegetarianismo. E afirma que o feminismo deve adotar o vegetarianismo pelo que ele é e representa.

O prefácio à primeira edição inicia com a certeza da autora de que o feminismo e o vegetarianismo estão intimamente ligados, inter-relacionados, assim como o domínio patriarcal está secularmente sustentado pelo consumo dos animais, tornando-os indissociáveis. Os capítulos que virão a seguir são apresentados de modo bem sucinto pela autora.

A parte I – os textos patriarcais da carne – começa com o capítulo intitulado “A política sexual da carne” onde vemos a íntima relação do patriarcado com o consumo de proteína animalizada. O consumo de proteína animalizada não só contribui para manter a virilidade, ou fortalecê-la, mas é sinônimo dela. Comer animais é ser viril. Por outro lado, o comer vegetais é o que define o feminino. Para analisar essa tese, Adams recorre a fontes históricas numa ampla literatura. Nas obras de culinária, por exemplo, o sexismo alimentar é explícito: carne para eles, vegetais para elas.

Nesse capítulo encontramos outra temática polêmica: a política racial da carne. Para Adams o consumo hiperbólico da carne não é só símbolo do poder masculino, é também do racismo. Existe uma hierarquia da proteína animalizada, como motor da hierarquia de raça, gênero e classe. Para os homens brancos civilizados, carne, para outras raças e as mulheres, cereais e frutas. Segundo a ativista, “o racismo e o sexismo, juntos, defenderam a carne como alimento do homem branco”. Vemos também que a suposta supremacia masculina advinda do consumo de proteína animalizada é passada cotidianamente pelo sexismo lingüístico. O machismo também influência nossa forma de expressão verbal. E dentro da lógica machista, os homens que ousam não comer animais, são chamados efeminados, gays, fracos.

“Estupro de animais, retalhamento de mulheres” é o título do segundo capítulo da obra. O estupro e o retalhamento dos corpos de fêmeas de outras espécies e de mulheres são, infelizmente, corriqueiros; frutos de uma tradição milenar machista que não mede esforços para naturalizar tais práticas. Para analisar essa questão Adams apresenta o conceito de “referente ausente”. Conceito descoberto por ela em 1987 ao ler a obra Bearing the Word de Margaret Homans. Era o que precisava para entrelaçar a opressão das mulheres e dos animais. O capítulo traz as três formas pelas quais os animais se tornam referentes ausentes: o literal, o conceitual e o metafórico. Depois de dissertar sobre o “racismo e referente ausente”, a “violência sexual e o consumo de carne”, e o “ciclo de objetualização, fragmentação e consumo” metafórico da carne, Adams tratará da fragmentação eliminadora em seis partes: 1, violência com equipamentos; 2, o matadouro; 3, a linha de desmontagem como modelo; 4, o estupro de animais; 5, Jack, o estripador; 6, retalhamento de mulheres. Cada uma dessas fragmentações é apresentada de forma sucinta pela autora, porém buscando apoio numa ampla literatura.

Adams também apresenta limites no uso que algumas teóricas feministas fazem da analogia do consumo da mulher como consumo de animais ou partes deles. Há uma limitada intersecção, que vai somente até o ponto de expor o referente ausente feminino, não adentra na problemática dos animais. Quanto aos defensores dos animais não-humanos devem ser cautelosos no uso que se faz da linguagem, como usar o “estupro metafórico” sem incluir no debate o protesto contra a violência sexual originária. “Nosso objetivo é resistir à violência que separa matéria e espírito, eliminar a estrutura que cria os referentes ausentes”. Quando Adams, diz “nosso objetivo”, ela se refere a quem? Será as ecofeministas animalistas, que conseguiram ver a lógica da opressão além do que viram as feministas tradicionais e os vegetarianos sexistas?

Após tratar do consumo de algo que não está presente, mas apenas sua referência, a autora inicia o capítulo terceiro que versará sobre a objetualização do consumo por meio da linguagem. Em “violência mascarada, vozes silenciadas”, Adams expõe as opressões sofridas por mulheres e animais transmitidas pela linguagem para em seguida discutir o silêncio das vozes vegetarianas diante da cultura dominante do consumo de carne. Chamando a atenção das feministas tradicionais para o especismo na linguagem, Adams inicia dizendo que: “até agora, o feminismo aceitou o ponto de vista dominante com relação à opressão dos animais, em vez de lançar sobre essa opressão toda a luz da sua teoria – nossa linguagem não se centra apenas no masculino, ela também é centrada no humano”.

Para a autora a linguagem transmite comumente o que vemos e fazemos no cotidiano violento no que se refere aos animais. O especismo e a coisificação são expressados por metáforas e alegorias. Segundo ela a opressão institucionalizada dos animais se sustenta em dois níveis: na formal com matadouros, açougues, zôos e circos; e, por meio da linguagem, como por exemplo, se referir ao consumo de carne e não o de um cadáver. O que é servido é vitela e não “pedaços de bezerrinho anêmico morto”. Boi, porcos e frangos são “unidades animais consumidores de grãos”.

Tanto as feministas quanto os vegetarianos buscam redefinir as palavras ou buscam suas origens e usam o termo com o sentido correto, literal, sem a carga de opressão que adquiriu com o tempo. Mas aproveitando para escancarar a violência mascarada pelo pensamento simbólico, dois exemplos emblemáticos são citados, o uso de “estupro violento” e “abate humanitário”, em ambos, um adjetivo tira a violência inerente na ação.

Segundo Adams, num mundo patriarcal, a cultura dominante viril-carnista constrói barreiras às vozes vegetarianas, e os protestos a essa forma de violência institucionalizada são constantemente frustrados. Os vegetarianos são denominados, de um lado, como “seletivos, exigentes, ácidos, hipócritas, confrontadores”, e de outro, sua objeção à violência é tida como sentimentalista, infantil ou “imoralidade gay”, ou seja, “feminina”. O discurso vegetariano é vinculado ao feminino por um motivo estratégico: tudo que se refere às mulheres, ao feminino, é visto como fraco, inferior, sentimental (e não racional); logo, o vegetarianismo carece de sustentação, de potência, de força.

Dentre os nomes novos que buscam romper com a opressão via linguagem, temos “vegetariano”. A palavra passou por uma batalha no século XIX para se estabelecer, no entanto, em pouco tempo foi distorcida, e o “vegetarianismo” passou a incluir pessoas que comiam peixe, frango e laticínios. Adams é enfática ao dizer que quem não come carne vermelha, mas come outros animais, não é vegetariano. Para a autora, aceitar que quem come algum produto de origem animal seja considerado um vegetariano tira o significado e a historia do termo. Outro nome novo utilizado pelas vozes silenciadas é “proteína animalizada e feminilizada”. Os termos, “animalizada” e “feminilizada’’, tem como objetivo reinserir o referente ausente no debate. Após um breve lembrete de como se dá a exploração das fêmeas (vacas, galinhas e abelhas), Adams lembra que: “os veganos boicotam a proteína feminilizada e animalizada”.

Outro nome novo que vale destacar é “vegano”. Segundo Adams o conceito superou a distorção que foi feita com o “vegetariano” e reconhece o problema das “proteínas feminilizadas”. Após falar da criação da palavra, Adams cita sua inclusão no dicionário ilustrado de Oxford, porém, ao criticar a não inclusão de “veganismo” no programa da Microsoft, ela o define assim: “veganismo é uma postura ética baseada na compaixão por todos os seres vivos.” Uma pena. Justamente num capítulo sobre a linguagem, termos e conceitos, a autora define veganismo dessa forma absurdamente equivocada. O capítulo é finalizado com apontamentos sobre a literatura de protesto vegetariano que vem da antiguidade grega aos dias atuais pelas obras de não ficção.

Já no último capítulo da parte I, intitulada “A palavra se faz carne”, Adams disserta sobre o diálogo entre vegetarianos e carnistas, o motivo de alguns tornarem-se vegetarianos e a maioria não. Segundo a autora, os vegetarianos não percebem as barreiras que se colocam entre eles e seu público. Um motivo é a crença de que todos os que o ouvir se convencerão como outrora ele fora convencido. Outro fato é a ausência de um olhar feminista no diálogo vegetariano; e outro, é o lugar e a hora em que a conversa se realiza, geralmente nas horas das refeições.

Após analisar a literatura de protesto vegetariana, Adams passa pelas barreiras políticas e culturais à palavra vegetariana. Exige-se, por exemplo, que a feminista e a vegetariana explique os motivos que levaram a adoção de tal postura, partindo do princípio de que essa ideologia e essa dieta não são “normais”, fogem aos padrões. Uma feminista que destaca a violência sexual embutida em determinado contexto é tachada de histérica; e a vegetariana que foca no assassinato dos animais é chamada de sentimentalista. Segundo Adams, “quem é feminista ou vegetariano torna-se um problema”.

A segunda parte da obra, chamada “Da barriga de Zeus”, começa com o capítulo intitulado “textos desmembrados, animais desmembrados”. Neste capítulo a autora discorrerá sobre o significado de desmembramento, tanto o que fragmenta os animais quanto o que distorce textos. Vemos aqui que o texto pode ser desmembrado de varias formas: ignorando os textos vegetarianos; ignorando contexto ou significado do vegetarianismo; forçando o significado de modo que contribua para o discurso dominante viril-carnista. Tanto feministas quanto vegetarianos tentam preservar a integridade do texto original.

A ativista dedica uma longa seção a Joseph Ritson, defensor da integridade dos textos e apologista da dieta vegetariana. Na seqüência vemos a importância de escrever o vegetarianismo, como escrita do literal e rompendo com o simbólico. Na esteira de Margaret Homans e Mary Shelley, Adams propõe promovermos a palavra vegetariana. Ao analisar a obra de Isabel Colegate, apresenta quatro formas de se promover a palavra vegetariana. E por fim, escritores como Percy Shelley, Joseph Ritson e Henry Salt são citados como referências na tentativa de multiplicar os adeptos do vegetarianismo pela leitura de textos que combatem a dominação viril-carnista e defensores de um modo de vida onde se alimenta decentemente.

O sexto capítulo é dedicado ao “monstro vegetariano de Frankenstein”, à obra de Mary Wollstonecraft Shelley. Adams inicia o capítulo dizendo que: “O monstro criado por Frankenstein era vegetariano. Este capítulo, ao analisar o significado da dieta adotada por uma Criatura composta de partes desmembradas, demonstrará os benefícios de “re-membrar”, em vez de desmembrar, a tradição vegetariana”. Segundo a autora, Mary Shelley promove a palavra vegetariana ao unir feminismo, radicalismo romântico e vegetarianismo em seu texto. No entanto, esse fato é ignorado pelos cuidadosos críticos literários nessas últimas décadas. Na primeira parte de sua análise, Adams recorre ao interessantíssimo conceito de “círculos concêntricos” da filósofa Mary Midgley.

No segundo momento dedicado ao radicalismo romântico, Adams disserta a partir de uma junção primorosa das pesquisas de historiadores do século XVIII com alguns clássicos da literatura produzida na época. Em ambas vemos o destaque dado à forma como o vegetarianismo, uma dieta de vegetais, era tida como algo subversivo, uma afronta a sociedade tradicional. No entanto, ao produzir sua obra, Mary Shelley, não só utiliza o que aprendeu com a literatura (palavra) vegetariana greco-romana e moderna e com o círculo romântico masculino ao qual cresceu, mas dá um passo além, acrescentando a voz feminina. É importante destacar que ao colocar Frankenstein como vegetariano representante da Era de Ouro e da dieta naturalista, destaca-se que a Criatura segue a dieta ideal de Rousseau que incluía ovos, leite e queijo; Adams cai em contradição com a definição de vegetarianismo dada no prefácio à edição de décimo aniversário: “o vegetarianismo tratado neste livro não admite os laticínios, nem os ovos”.

Na terceira e última parte de sua análise dedicada à “decifração de significados silenciados”, somos apresentados a representação que a Criatura faz do feminismo e do pacifismo. Assim como o vegetarianismo que a Criatura representa foi ignorado pelos críticos, sua voz representativa da luta feminina contra a invisibilidade das mulheres nos círculos intelectuais da época também é ignorada ainda hoje, segundo Adams.

No sétimo capítulo, o mais longo da obra, a autora irá se dedicar a tríade conceitual: vegetarianismo, pacifismo e feminismo; tendo como pano de fundo a Primeira Guerra Mundial. Para Adams a Grande Guerra uniu as ideias pacifistas e vegetarianas, e acabou por estimular o vegetarianismo tornando-o o movimento do século XX, além de um tema corrente nos romances assinados por mulheres. Utilizando da mesma estratégia de leitura realizada no capítulo quinto, Adams levanta quatro temas correntes nas escritoras do pós-guerra: repúdio a violência masculina; a identificação com os animais; a rejeição do domínio masculino sobre as mulheres; e, a proposta de um mundo ideal formado pelo vegetarianismo, pacifismo e feminismo.

Uma seção é dedicada a “narrativa da interrupção”. Segundo Adams, a técnica da interrupção foi utilizada pelas romancistas feministas para dar voz ao vegetarianismo. A história sofre um desvio, o assunto é interrompido para dar lugar a um tema vegetariano ou em defesa dos animais, o que provoca uma instabilidade no domínio patriarcal. A interrupção no decorrer do texto, que retira o protagonismo do macho viril-carnista é representativa da subversão da ordem. Na conclusão do capítulo Adams volta a dizer que vegetarianismo e pacifismo andam de mãos dadas. Ao afirmar que a contestação do ethos dominante que naturaliza o consumo de animais é a contestação da guerra, de um mundo belicoso, Adams faz a crítica a homens e mulheres que se prendem a esse ethos dominante.

A terceira parte da obra, “Coma arroz, tenha fé nas mulheres”, é uma resposta as questões de gênero embutidas na opressão dos animais ignoradas pelas feministas. Segundo a autora, o oitavo capítulo, intitulado “A distorção do corpo vegetariano” foi escrito como resposta a pergunta se ela tinha escrito alguma coisa sobre a história dos direitos animais. O objetivo do capítulo é analisar a tendência das especialistas em ignorarem a relação do feminismo com o vegetarianismo. Para concretizar tua intenção, Adams fará uso do conceito de “corpo vegetariano”.

A autora inicia dizendo que algumas feministas se vestem de peles e comem proteína animalizada e feminilizada em eventos feministas. Uma correção a afirmação de Adams é necessária, não são algumas, mas a maioria, e que distorce o corpo vegetariano. Isso nos leva a um ponto importante, e polêmico, se a maioria das feministas distorce esse corpus enaltecedor do vegetarianismo que não é bem visto pela cultura dominante masculina, acaba por reproduzir a lógica da opressão que dizem combater. Um tópico de destaque nesse capítulo é o que Adams chama de “textos da carne” que são usados em oposição ao corpo vegetariano. Para ela, influenciados pela cultura dominante, historiadores contestam a crítica radical dos textos vegetarianos, ao invés de explicá-los. Dentre os usos comuns de detratação e desmembramento da palavra vegetariana está a afirmação de que Hitler era vegetariano. Adams responde a essa mentira histórica recorrendo a Roberta Kalechfsky e ao historiador vegano Rynn Berry. Em sua obra Living Among Meat Eaters, de 2001, Adams analisará com detalhes a dinâmica que leva as pessoas a protegerem seu consumo de carnes apelando ao falso vegetarianismo de Hitler.

Na esteira de Isaac Bashevis Singer, a ativista critica a adoção do vegetarianismo apenas por motivo de saúde, ignorando sua base política e moral. Outro tema corriqueiro e que segundo Adams é estimulado pela cultura dominante é a acusação de que o vegetarianismo é racista. Mas provavelmente, a crítica de Adams a omissão das feministas quanto ao vegetarianismo, ou melhor, aos textos feministas-vegetarianos é o que mais provoca oposição a sua obra. O recado dado na última seção do capítulo é bem claro: “ao recusar a ordem masculina da comida, as mulheres praticaram a teoria do feminismo por meio do seu corpo e de sua opção pelo vegetarianismo”. Para Adams “a matança de animais” para consumo “é uma questão feminista que as feministas deixaram de levantar…” por estarem mergulhadas numa opção dietética masculina e na estrutura do referente ausente.

No último capítulo a autora propõe “uma teoria crítica feminista-vegetariana”, com o objetivo de dar continuidade à associação que algumas escritoras feministas fizeram no decorrer da historia entre feminismo e vegetarianismo. Adams insiste na ideia de que o vegetarianismo representa a independência da mulher. Vegetarianismo é posto como resistência a cultura dominante masculina. Para ela assim como o vegetarianismo é a prática dos direitos animais, o vegetarianismo também é parte da prática da teoria feminista; e defende a intersecção do feminismo e do vegetarianismo, pois aspectos fundantes de um e do outro se cruzam. Logo, se animais e as mulheres são explorados e coisificados pela mesma estrutura social viril-carnista, é preciso um ativismo não fragmentado para por fim a essa opressão.

Ao fazer um apanhado histórico, mostrando desde os tempos homéricos essa relação íntima da libertação da mulher com a abstenção do consumo de carnes, Adams relata as oferendas que as gregas ofereciam as deusas como vegetarianas, porém contendo mel, peixe e talvez aves. Novamente a autora cai em contradição com sua definição de vegetarianismo dado no prefácio ao décimo aniversário da obra.

Adams dedica uma seção a adoção do vegetarianismo. Atitude que ela denomina “busca vegetariana”, dividida em três partes: 1) a revelação da nulidade da carne como um componente da alimentação; 2) nominar as relações (entre carne no prato e o animal morto, entre nossa ética e nossa dieta, etc.); 3) a censura a um mundo carnívoro (censurar uma sociedade carnívora é censurar uma sociedade patriarcal). Para a autora, além da busca vegetariana colocar as atitudes isoladas das mulheres dentro de um contexto que pode explicar suas decisões, pode contribuir para novas interpretações literárias de romances e biografias de mulheres. Uma nova crítica literária surge a partir daqui, com um significado vegetariano. O último capítulo da obra termina chamando a atenção novamente para o fato de que o ativismo em defesa dos animais, assim como os escritos das feministas-vegetarianas foram ignorados pela insensibilidade dos críticos especializados. Diante disso Adams conclui argumentando que para fundar e desenvolver uma teoria crítica feminista-vegetariana é necessário estar munido de sensibilidade aos significados tanto literários quanto históricos que divergem das interpretações tradicionais.

Em seu Epílogo, “Desestabilização do consumo patriarcal”, a partir da questão do custo de se consumir proteína animalizada, Adams reforça a ideia de que na cultura patriarcal as mulheres têm sido engolidas e também são as que engolem. São consumidoras e as consumidas. A carne é um símbolo do poder masculino, comer animais é uma prática fundada em valores patriarcais. Logo, esse consumo é a representação da exclusão da mulher e de sua autonomia. Para Adams não é possível derrubar o poder patriarcal se as mulheres continuarem a consumir proteína animalizada e feminilizada. Uma interessantíssima mensagem é passada nesse epílogo, a de que os códigos dos textos da carne precisam ser rompidos. Para isso a carne não pode estar presente, já que sua presença materializa os códigos antigos. Para a ativista indiscutivelmente haverá uma destruição do atual prazer gustativo das refeições regadas à proteína animalizada, mas o que vem substituir é o prazer advindo da gastronomia vegana.

Em tom poético, a desestabilização do consumo de carne vem de um pedido de fé nas mulheres, de libertação de Métis e de todas as que foram engolidas por Zeus. Assim restaurando a integridade das relações que foram mantidas fragmentadas entre humanos e com os outros animais.

Fazendo uso de um discurso interseccional, a ativista Carol Adams, procura apresentar em A política sexual da carne, sua teoria crítica feminista-vegetariana que está fundada num tripé: feminismo, vegetarianismo e pacifismo. A obra é realmente um manual de ativismo não fragmentado. Um chamado a ação, porém, bem fundamentado, ou como ela chama: “teoria engajada”. São trinta e oito laudas de notas e referências. Uma ampla bibliografia que expressa as quase duas décadas de pesquisa para a construção das teses defendidas na obra. Para além de um estéril discurso teórico acadêmico, o leitor e a leitora são jogados diante de situações cotidianas da antiguidade aos dias atuais – que escancaram o sexismo, o especismo e o belicismo de nossas relações sociais. Fica perceptível o quanto uma escolha dietética pode ser revolucionária ou mantenedora do status quo. Portanto, A política sexual da carne é uma leitura indispensável, para homens e mulheres, ambos reprodutores e mantenedores da naturalização de uma cultura de opressão.