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Evely LIBANORI. Nós, Animais. Livre Expressão, 98 páginas.

A acadêmica das Letras, Evely Libanori, nos agracia com essa obra de crônicas. Um livreto, leitura de uma sentada, mas de uma profundidade sem tamanho. Que o leitor não se engane com seu pequenino tamanho. Obra delicada, sensível e hipnotizante; porém, o princípio ético que o serve de espinha dorsal, a ética animal abolicionista, exige uma linguagem realista, sem subterfúgios. Os vocábulos que destacam a violência diária que os animais não humanos estão submetidos provocam incômodos aos não iniciados na causa animal.

Na crônica “O lagartinho” somos conduzidos por uma sensibilidade profunda e uma emoção palpitante sobre as dolorosas e angustiantes quatro horas que o lagarto-menino, filhotinho, passou até sua morte por queimadura.

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Em “Compras no mercado” vemos o infeliz processo pedagógico especista onde a mãe ensina a sua filha a comprar no açougue os pedaços de cadáveres como algo comum, natural e corriqueiro.

Os gatos e gatas, grande paixão da autora, participaram da maioria das crônicas. Por exemplo, a aprendizagem sobre as durezas do dia-a-dia, será ensinada pela verdadeira vida dura de Hélio, o deus sol. Hélio está preso numa pequena gaiola de arames brincando inocentemente.

“Ele estava fazendo a coisa mais inocente do mundo: estava brincando, na gaiola, amarraram uns penduricalhos e ele brincava com as bolinhas, feliz. Tão lançado à própria sorte, tão abandonado e largado, tão longe de saber o que é a desgraça dos animais abandonados”.

Aí eu entendi: “Eu, aqui, pensando que a vida é dura por ter que atender mãe e pai velhinhos, e você, gatinho, ah, e você, gatinho, que está preso sozinho nessa gaiola de arame porque ninguém te quis e está esperando adoção e sabe-se lá se alguém vai te querer e sabe-se lá o que a pessoa que te quiser vai fazer com você…”

Hélio voltará duas crônicas depois, em “O santo sem cabeça”, agora como uma personagem de pura travessura.

Na mais longa crônica da obra, “Ela mata gatos, não mata?”, a historia de um infanto gaticídio. Como pode uma mulher, e mãe, submeter os filhos recém nascidos de outra fêmea a uma morte lenta e dolorosa, e à mãe desses filhos o desespero de ouvir por dois dias seus filhos definhando e não poder fazer nada para salvá-los.

Em “A vida que esvai” e “Dó”, temos uma realidade demasiadamente triste e comum dos canídeos que ficam presos nos quintais, acorrentados, submetidos pelo descaso humano aos intempéries da natureza.

A hipócrita relação do consumo de animais com a religião é destaque em “O sacrifício da manicure”, “A boa solidão, “Para o meu Deus” e “Os mimadinhos filhos de Deus”, onde vemos a analogia do sofrimento e assassinato de Cristo com os dos animais abatidos. O especismo eletivo em comer uns e não outros.

Bem no meio da obra temos uma bela crônica existencialista, “Existir”, onde lemos:
“Como todo mundo nasce, nasci sem a escolha de não ter nascido. Nasci para viver sessenta, setenta, oitenta anos e para viver todas as longas horas de todos os meses, de todos os dias dos oitenta anos que vou viver. Quem em lançou aqui, sem pedir a minha permissão? A vida humana é um absurdo, eu concordo com Sartre. Mas eis que nasci, e nem um só dia houve em que eu tenha decidido me matar. Então me encontro aqui, humana, racional, ereta. A morte… Tenho ainda essa porta para abrir, essa possibilidade. Não poderia me matar e provocar a ira dos viventes. Não me perdoariam ser mais esperta do que eles a antecipar a morte”.

Marcada pela tristeza de ter nascido humana, uma dor por não poder escolher nascer em outra espécie. Mas um sonho, de quem sabe, renascer em outra.

Em “Um bem-te-vi no meu caminho” e “A levíssima presença do instante” encontramos a belíssima historia do resgate, cuidado e vivência com um bem-te-vi por vinte um dias. E por fim a soltura, ou melhor, a despedida, de um passarinho que ouvia Strauss.

A obra é toda ilustrada com desenhos simples e expressivos. Obra indispensável – para além do deleite de uma boa literatura – nas aulas de direitos animais ministradas tanto pelos docentes de língua portuguesa quanto por docentes de outras disciplinas em um trabalho interdisciplinar.