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Luiz C. SUSIN e Gilmar ZAMPIERI. A vida dos outros – Ética e Teologia da Libertação Animal. 320 páginas.

A obra dos frades capuchinhos, Luiz C. Susin e Gilmar Zampieri, A vida dos outros – Ética e Teologia da Libertação Animal tem a possibilidade de inaugurar o interesse dentro dos muros da Igreja no Brasil para uma temática que já caminha há séculos em solo Europeu no meio religioso, e que segundo os autores é um ensaio de Teologia Animal.

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Está dividida em três partes. Na introdução vemos que a Teologia da Libertação será o viés adotado como guia de leitura e interpretação da problemática animalista, devido seu caráter ético e crítico da fé e, sua proposta de superação do sofrimento pela libertação. “E uma nova causa está sendo anunciada por visionários e profetas, para a qual nós, teólogos, ainda fazemos ouvidos moucos e vistas grossas. Que causa? A causa da libertação animal! Há, de fato, um holocausto diário, uma guerra permanente, uma carnificina sem precedentes, e não nos damos conta, não queremos nos dar conta, nem ao menos queremos pensar no assunto, justificamos, por antecipação, como sendo inevitável, normal, moralmente aceitável e um não problema teológico.”

O “não problema teológico” leva a ecoteologia a ignorar o especismo que sustenta seu antropocentrismo. Sim, a ecologia é antropocêntrica. Chegou o momento da ecoteologia ver os animais não humanos como seres sencientes, sujeitos que constroem suas biografias a partir de seus interesses e preferências. É sabido que a humanidade passou por três abalos em sua crença de ser o centro do universo, primeiro com Copérnico (1473-1543), o segundo com Darwin (1809-1882) e o terceiro veio com Marx (1818-1883) e com Freud (1856-1939). Para os autores, a superação do especismo no campo teológico vem do quarto abalo na prepotência humana: a inclusão dos animais no círculo da moralidade.

A primeira parte da obra se chama “Principio compaixão”, e será guiada por duas questões: “Quem e quantos são os animais?” e, “Como é que nós, humanos, os tratamos?”. Em Empty Cages, Tom Regan fala em cinco metamorfoses no que se refere às formas como os humanos lidam com os animais não humanos. Na mesma esteira, os frades, compilam os capítulos a partir da ideia de cinco campos de concentração: o de estimação, o de entretenimento, o da experimentação científica, da vestimenta, e da alimentação. “Em todos os campos a relação com os animais é a mesma relação básica do capitalismo, a saber, relação de propriedade. Nessa relação o animal é tido como coisa. E coisa, todos sabem, é algo e não alguém. Se coisa não é alguém, então não tem dignidade própria, e se não tem dignidade própria não tem valor em si, e o único valor é o seu preço, que é dado por seu proprietário.”

No primeiro campo, o dos animais de estimação, os autores trazem algumas questões sobre o mito de que os tratamos bem, utilizando como modelo a convivência com cães e gatos. No segundo campo, a crítica é direcionada ao confinamento, a tortura e a morte ligada diretamente ao circo com animais, ao zoológico, as touradas, farra do boi, rodeios, rinhas. Caças esportivas e corridas de galgos também são lembradas. No terceiro, são apresentados os questionamentos já tradicionais ao uso de animais para o ensino e a pesquisa, e propondo métodos substitutivos.

O quarto campo é o do vestuário, sobre os animais transformados em utensílios como: sapatos, chinelo, casacos, bolsas, cinto, cachecóis. De maneira sucinta é feita a crítica a indústria da pele, do couro e da lã. As contaminações no meio ambiente por metais pesados e dos trabalhadores que extraem e curtem as peles também são citadas. E por fim, o quinto campo é o tópico mais longo da primeira parte da obra e versa sobre os números de animais abatidos para consumo humano. São bilhões anualmente: algo aterrador. A razão do sofrimento nas condições de criação intensiva, a indústria do frango e dos ovos, a criação do gado de “corte e leiteiro”, a indústria da carne de vitela (subproduto da industria do leite), a criação de suínos, o manejo e o abate, dentre eles o “humanitário”.

Os frades concluem ressaltando que para por fim a banalização da crueldade precisamos mudar nossa postura ética, o que levará a uma nova sensibilidade, uma nova percepção e consciência. Assim como uma nova perspectiva religiosa com outra fundamentação teológica.

A segunda parte da obra se chama “Princípio libertação” e suas quase cem páginas são dedicadas a um passeio histórico dos gregos à teoria dos direitos animais de Tom Regan. Uma resumida historia da filosofia dividida entre os que legitimaram o status de coisa e propriedade dos animais, e os pensadores que foram vozes dissidentes e defenderam a inclusão dos animais no círculo moral. A divisão dessa parte da obra nos lembra muito o percurso traçado por Daniel Braga Lourenço em “Direitos dos Animais: fundamentação e novas perspectivas”. Os autores apresentam primeiro as ambiguidades na herança grega e na herança bíblica judaico-cristã. Quanto aos gregos, Pitágoras é posto como o “pai” da defesa dos animais, e Aristóteles é o representante máximo do especismo. Uma pena a leitura dos frades ter se restringido à Política do estagirita, e não ter percorrido o corpus, onde em seus tratados biológicos temos outras visões sobre a animalidade. Plutarco e Porfírio são lembrados como defensores dos animais no fim do período grego.

Quanto ao mundo judaico-cristão, uma questão dita o tom: “Numa justa interpretação, não há antropocentrismo na Bíblia, já que Deus é o centro, mas como escapar de interpretar alguns textos bíblicos como fundadores do antropocentrismo especista que seria justificado pelo próprio Deus?”

Os autores citam dois trechos do Gênesis e um de Paulo aos Coríntios, como exemplo de prescrições especistas, no entanto, antecipou que na parte III irão defender “a tese de que o que é dominante na prática especista com pretensa fundamentação bíblica na verdade não passa de uma leitura ideológica no texto bíblico”. Ao tratar das ambiguidades na teologia cristão, Santo Agostinho e Tomas de Aquino, os dois maiores nomes da teologia cristã especista serão contrapostos pela figura de São Francisco de Assis, que apesar de todo “amor” aos animais não deixava de comê-los.

Quanto às ambiguidades da Era Moderna, as teses especistas estavam bem representadas com Descartes e sua teoria do “animal máquina” e com Kant com sua ética dos deveres indiretos. Sobre esse período do Renascimento ao Iluminismo, os frades assim se referem:
“A voz antropocêntrica continua dominante e vencedora, mesmo que vozes dissonantes se façam ouvir, cada vez com mais nitidez, como em Montaigne, Voltaire, Rousseau e Bentham. Mas no meio do caminho há Kant, e é ele que representa a tradição antropocêntrica elevada à forma de filosofia iluminista. E será Kant o paradigma vencedor nos tempos da Modernidade, tornando-se a pedra no caminho dos defensores dos animais.”

Representando a voz dos animais e a virada em defesa deles na contemporaneidade temos o filósofo utilitarista Peter Singer e seu “principio da igualdade na consideração de interesses semelhantes”, e o filósofo deontologista Tom Regan com os direitos animais a partir dos animais como sujeitos-de-uma-vida. O capítulo dedicado à ética de Singer é ditado pela leitura da obra Ética Prática. A restrição da leitura dos autores a Libertação Animal e fundamentalmente a Ética Prática, leva-os a dizer na conclusão da seção que até certo ponto ele é “defensor dos direitos dos animais”. Uma leitura atenta da obra de Singer deixará claro que ele nunca foi e nem pretende ser um defensor dos direitos animais. Sua perspectiva é outra. A segunda voz na contemporaneidade, e segundo os autores, com um horizonte mais ampliado do que a postura utilitarista de Singer, é a do filósofo Tom Regan, e o capítulo dedicado a sua teoria é ditado pela leitura de Jaulas Vazias. Na abertura desse capítulo, lemos que Singer considera inadequado falar “em direitos dos animais”.

A terceira parte da obra se chama “Princípio Cuidado”, é focada na reflexão teológica, um exercício hermenêutico e uma exegese animalista. Dividida em quatro capítulos. Primeiro sobre “exercícios de teologia da Libertação Animal”, segundo versa sobre “O olhar da tradição bíblica sobre os animais”, o terceiro sobre “O olhar da tradição cristã sobre os animais”, e por fim, “O olhar de São Francisco de Assis sobre os animais”. Os autores falam da complexidade que deve ser considerada ao se debruçar sobre os textos bíblicos. Duas observações são apresentadas sobre a interpretação dos textos. Elas conduziram as quatro regras elencadas pelos autores no “modo de usar da bula bíblica” no trabalho que se propuseram fazer.

Recorrendo aos profetas da era axial, duas seções são dedicadas detalhadamente ao tema do “sacrifício de animais”. “Os profetas com sua crítica, “desconstruíram” os rituais e as intenções e mostraram que por trás do sacrifício o que temos é a crueldade e o assassinato, ainda que camuflado, primeiro do ser humano, depois, de forma substitutiva, o sacrifício do animal no lugar do humano, com a mesma crueldade encoberta por uma áurea de sacralidade.”

Mesclando passagens do Primeiro e do Segundo Testamento, os frades comentam os versículos mais conhecidos da relação dos humanos com os animais não humanos, dando um destaque demasiado ao livro do Gênesis: a comunidade da aliança que inclui os animais, a serpente como o mais inteligente dos animais, o dilema de Caim, A arca de Noé, o destino comum de humanos e animais.

Das duas brevíssimas seções dedicadas a Jesus, a primeira inicia com a, provavelmente, mais importante pergunta ao se falar em uma teologia animal e uma defesa teológica dos animais não humanos: “Jesus foi vegetariano?”. Infelizmente os autores respondem “não”. Seja nessas curtas seções, seja na bibliografia não temos uma única obra de historiadores que defendem o vegetarianismo de Jesus, algo hoje com uma ampla bibliografia, com belos trabalhos filológicos. A exegese até agora utilizada pelos frades retirou-se justamente no momento do estudo cristológico.
Jesus é a figura do Cordeiro de Deus. Sua oposição à transformação do Templo de Jerusalém em comércio de animais e local por excelência de sacrifício irá pesar político e religiosamente para sua condenação. Jesus como Cordeiro vem em substituição dos cordeiros e bodes expiatórios sacrificados. “Sobre os animais não pesará mais o sacrifício que lhes rouba a inocência e os submete a sofrimento e morte por uma religião montada como sacra mentira. O Cordeiro de Deus não liberta somente os humanos, mas todos os cordeiros e bodes inocentes, todos os animais votados ao sacrifício.” Os autores recorrem a um sermão de John Henry Newman em 1842, onde é feita a analogia de Cristo perseguido, sofrido, torturado e morto, com a dos animais, inocentes, presos, torturados e por fim, mortos. Ambos sem culpa alguma.

O evangelho de Marco será fonte para uma interessante leitura de Jesus como inaugurador do Reino de Deus, que será feito na companhia de animais. como Adão com os animais no paraíso recuperado, e Noé com os animais salvos do dilúvio. Para Marcos os animais nos precedem no Reino. Sempre com o olhar dos profetas, agora, Ezequiel e Daniel, os autores comentaram o lugar dos quatro animais do Apocalipse.

O início do estudo quanto ao olhar da tradição cristã sobre os animais é marcado pelas leituras que Le Goff fez da relação do cristianismo com a natureza. O medievalista divide em três grandes etapas: a primeira, os cristãos em meio ao paganismo se afastam dos elementos da natureza por temer o poder deles sobre os humanos. Na segunda, já na passagem do século XII para o XII, o “medo da natureza” é superado e emerge a figura de São Francisco de Assis com uma “espiritualidade de uma dimensão ecológica”. E a terceira é a modernidade que se estende até hoje, com seus mitos de progresso, a razão como dominadora da natureza, o desencantamento e exploração.

Na seção intitulada “os bestiários de Cristo, dos santos e dos homens” temos uma belíssima descrição da relação de alguns santos com os animais e a simbologia que liga Cristo aos animais. No entanto, segundo os autores, a herança grega (platônico-aristotélica) trazida pela teologia cristã será danosa aos animais. “A classificação e a hierarquização, mesmo em teologia, se dão em favor do ser humano, afirmado como superior, em detrimento das demais formas de vida, classificadas como inferiores. E não se limitam a sentenças ontológicas, pois implicam sentenças éticas, juízos de valor: uns valem mais e outros menos, uns devem ser tratados com mais dignidade e outros podem ser tratados como não tendo dignidade.”

Os autores fazem uma interessante crítica à teologia cristã como sacralizadora do especismo. Pontuando que quando se coloca a necessidade de romper a barreira especista, a reação é de escândalo religioso e incredulidade, e cita o Catecismo da Igreja Católica, n. 2418, que diz para não ser dada atenção aos animais à altura dos humanos. O especismo, assim como racismo, sexismo já tiveram justificativa teológica, afirmam. Os ensinamentos especistas de Tomas de Aquino, em sua obra máxima Suma Teológica, que já no primeiro artigo autoriza a morte dos animais para benefício humano, são ainda hoje mantidos pelo Catecismo da Igreja Católica. De maneira contraditória é pedido uma relação não cruel com os animais, criaturas de Deus, mas autoriza e legitima o uso deles para alimentação, vestuário, lazer e experimentação científica. Ou seja, um catecismo bem-estarista.

Assim como legitimadora da dominação do humano sobre os animais, a encíclica Centesimus Annus, de João Paulo II, é citada também como opositora ao biocentrismo. A seção que fecha o capítulo sobre o olhar da tradição cristã é dedicada à encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, e por mais que os autores queiram fazer crer, nenhum ar novo vem do documento. É uma encíclica de tom ecológico e os animais aí referidos são meras peças para o bom funcionamento do meio ambiente. A morte dos animais é apenas um prejuízo ecológico.

O quarto e último capítulo da terceira parte é dedicado a São Francisco, a partir de três fontes: Tomas de Celano, São Boaventura e os Fioretti de São Francisco. A prescrição de Francisco na Regra para que seus companheiros não criem animais é emblemática: “Ordeno a todos os meus irmãos, tanto clérigos como leigos, ao irem pelo mundo, ou morarem em lugar fixo, eu de modo algum criem qualquer animal, nem junto de si mesmos, nem com outra pessoa, nem de qualquer outra forma. Nem lhes seja lícito andar a cavalo, a não ser que se vejam obrigados por doença ou por grande necessidade.”

A relação dos animais com Francisco é contada de forma encantadora. Uma relação de amizade, de cumplicidade e de companheirismo. “Para Francisco, a relação com os animais se dava na condição de Sine proprium”. Ele teria vivido como uma criatura em meio a outras criaturas, uma verdadeira fraternidade. Os autores citam na integra o relato do milagre que Francisco fez quando mediou o pacto de paz entre um lobo e a população da cidade de Gúbio. Segundo os frades houve uma aliança mútua entre a cidade e o lobo, sem humilhação nem sujeição desvantajosas. Apesar de todo “amor” e carinho pelos animais, Francisco não deixou de os comer, pois nas escrituras está escrito que ao sair pelo mundo pregando o Evangelho, deve-se aceitar a hospitalidade e alimentar-se do que lhe for oferecido para comer.

A conclusão começa a partir da questão “Que devemos fazer?” de Atos dos Apóstolos (2,37), e da encíclica ecológica Laudato Si’, os autores dizem que precisamos de uma urgente “conversão” quanto ao trato com os animais. Dizem que temos alternativas aos campos de concentração e de tortura dos animais. No entanto, não indicam a adoção do modo de vida vegano e a abolição do uso dos animais, o que seria a resposta mais coerente e justa a questão: “que devemos fazer?”. Outras quatro historias são contadas no fechamento da obra: “O frade e a tourada”, “o menino, o leite e a vaca”, “O filósofo, o cão e a transcendência” e a “conversão animal”. Narrativas de transformação, de mudança de visão quanto à animalidade que nos configura.

Apesar da importância da obra no cenário teológico brasileiro, é importante ressaltar alguns limites. Como na seção voltada à nomeação, dizer que sabemos cientificamente que na cadeia alimentar “o ser humano emerge como onívoro, portanto, carnívoro e caçador”, e algumas páginas depois ao explicar a passagem do Gênesis onde é dado a Noé e seus filhos a licença para comer outros animais, lemos “É uma evidencia histórica, evolutiva e científica de que o ser humano emergiu onívoro, portanto também carnívoro e caçador”. Outro limite é a defesa do uso de animais para terapias. Desnecessária também é a criação de uma dicotomia, entre a herança hebraica e a grega, a primeira transmitida com texto de narrativas sensíveis, a segunda transmitida por um pensamento lógico frio, logo, insensível à questão animal. Concluir a obra colocando que a abstenção de carne em um dia da semana (ou dois ou três) é uma revolução, demonstra que apesar de toda a leitura feita e de toda crítica realizada durante a obra, os autores não conseguiram ver as implicações práticas maléficas para os animais desse tipo de estratégia.

No plano conceitual, o limite se encontra ao utilizar em toda obra a expressão “direito dos animais” (Animal Law) e não “direitos animais” (Animal Rights) que seria o correto em se tratando de um ensaio do campo ético (da filosofia moral). A única exceção se dará no título da seção “Direitos animais e vulnerabilidade”. No entanto, a falha maior foi à inexistência de nenhum capítulo, ou uma seção pelo menos, dedicado ao “Dever de Compaixão” de Humphrey Primatt. O mesmo ocorreu com o maior nome da Teologia Animal do mundo, o teólogo Andrew Linzey. Na bibliografia vemos quatro obras suas, mas a sua teoria não mereceu uma seção sequer. Uma pena, teria enriquecido o trabalho.