Escrito em por & arquivado em Textos fundamentais.

Carne é, por definição, o tecido muscular de animais. O termo é, porém, popularmente estendido a todas as partes macias do corpo do animal, excetuando as vísceras e o tegumento (pele, pêlos, penas, escamas, etc). Há quem diga que “carne” é apenas a parte comestível de mamíferos, enquanto que frango, rã, peixe e frutos-do-mar não seriam carne, porém essa classificação não tem qualquer motivo de ser.

Para efeito de consumo as carnes são classificadas em carne vermelha e carne branca. A carne vermelha, mais escura, é a oriunda de bovinos, ovinos, caprinos e equinos, enquanto que a carne branca é mais clara e provém de outros animais (coelhos, aves, peixe, etc). A carne suína é, por vezes, classificada como vermelha e, por vezes, como branca. O que diferencia a cor da carne é a maior ou menor presença de mioglobinas, pigmento carregador de oxigênio dos músculos.

Histórico de consumo de carne por seres humanos

Os seres humanos descendem de primatas arborícolas africanos que se alimentavam basicamente de folhas e frutos. Por volta de 4 milhões de anos atrás o aquecimento global reduziu grande parte das florestas africanas a savanas. Isso levou a um maior espaçamento entre as árvores e à necessidade dos antepassados do ser humano percorrer grandes distâncias pelo solo. Isso levou ao bipedalismo e à necessidade de busca por novas fontes de alimentos.

Por extrema necessidade de sobrevivência, os descendentes do ser humano passaram a consumir qualquer fonte de matéria orgânica que pudessem digerir, e isso inclui a carne. A carne, nesse momento, era vantajosa por ser um alimento rico em calorias e nutrientes concentrados, e os hominídeos de então não podiam saber quando seria a próxima refeição. Passaram então a praticar a necrofagia, disputando o cadáver de animais abatidos por predadores, com hienas, abutres e vermes.

Por volta de 2,5 milhões de anos atrás os hominídeos passaram a desenvolver formas de abater suas próprias presas, lascando pedras e produzindo lanças e flechas. 1,5 milhão de anos após eles dominaram o fogo, o que os auxiliou a melhor ingerir e digerir a carne dos animais caçados. A domesticação animal teve início a relativamente bem menos tempo, a apenas 10 mil anos atrás.

O tabu em relação à carne

Não se pode ter conhecimento em relação à existência de tabus referentes ao consumo de carnes no período pré-histórico. Possivelmente alguns grupos possuíam tabus em relação ao consumo de carne humana, não sendo essa restrição, porém, aplicada a todos os grupos. Ao contrário do que se pode imaginar, a existência de um animal totem de determinado clã humano não criava um tabu em relação ao consumo da carne desse animal, sendo até mesmo sua carne preterida em relação à carne de outros animais. Possivelmente seu consumo criava a sensação de que o animal fazia parte da coletividade ou que o clã, mediante seu consumo, adquiria as virtudes que observava no animal.

O jainismo, religião codificada há cerca de 2,5 mil anos atrás, é a única das grandes religiões que expressamente condena todo e qualquer consumo de carne e que explica fazê-lo por motivos éticos. O hinduísmo e o budismo não proíbem expressamente o consumo de carne, facultando ao devoto seu consumo ou não, dependendo da linha seguida. O judaísmo proíbe o consumo da carne de todos os animais que não sejam mamíferos ruminantes de casco fendido, aves com olhos laterais e que não se alimentem de carne e animais aquáticos com escamas. O islamismo proíbe o consumo de carne de porco.

Na sociedade ocidental as pessoas possuem tabus em relação ao consumo da carne de cães e gatos, mas não vêem problema em relação ao consumo da carne de bovinos, ovinos, caprinos, suínos, aves e peixes. Como todo tabu, não há elementos que possibilitem fundamentar porque que o consumo da carne de determinadas espécies deve ser visto como nojento, anti-ético ou até mesmo um crime, e porque que o consumo da carne de outras espécies deva ser visto como uma atividade normal.

Considerações quanto ao consumo de carne

A carne ocupa posição central na cultura ocidental, possuindo o maior grau hierárquico dentre todos os demais alimentos. É também, por outro lado, o alimento que recebe maior número de criticas. Comer carne em nossa sociedade é sinônimo de “comer bem”. Seu consumo está associado às refeições festivas e à prosperidade das nações.

A presença de carne em um determinado prato frequentemente determina a denominação desse prato, ainda que a carne seja um mero ingrediente entre vários outros. Assim, uma pessoa pode dizer que almoçou strogonoff, quando na verdade este corresponde a cerca 1/4 da refeição, se considerados o arroz, a salada e a batata palha.

Os defensores do consumo de carne frequentemente recorrem a clichês e ao lugar comum. Comentários favoráveis ao consumo de carne são breves e muito pouco refletidos ou elaborados, geralmente fazendo alusão ao seu gosto, textura, suposta salutabilidade, sua acessibilidade ou valor protéico.

A carne vem recebendo crescentes críticas em países ocidentais, especialmente devido à conscientização em relação aos direitos animais, à sua associação com doenças crônicas degenerativas e à degradação ambiental provocada pela criação animal; a alimentação com maior ênfase em produtos de origem vegetal, por outro lado, vem ganhando popularidade.

Em estudos sobre motivos para se evitar determinados alimentos, a carne é mais freqüentemente citada, e os comentários sobre ela frequentemente são expressos em termos mais emocionais. A forma como os animais são criados, o fato da carne derivar do cadáver de animais, a percepção de que a carne faz mal à saúde, a sensação de “peso no estômago” após o consumo de carne, considerações ecológicas e sociais, a associação da carne com o barbarismo e a falta de civilidade . . . Frequentemente todos estes elementos se integram em um senso difuso de repulsão e desagrado em relação à carne.

A tendência à dissociação entre os consumidores de carnes

O aumento na popularidade de movimentos que protestam contra o uso de peles de animais, a caça, a extinção de espécies ameaçadas, a farra do boi, as touradas, as rinhas de animais, os métodos de criação e transporte de animais vivos na produção moderna de carne, e os grupos que promovem a adoção e controle não-eutanásico de populações de animais domésticos são reflexos de que a sociedade transita para uma nova instância moral no tocante à exploração de animais. A maioria dos ativistas engajados nestes movimentos, apesar de se dizerem defensores dos direitos dos animais, são consumidores de carne.

Esta anomalia moral apenas pode ser entendida quando compreendemos o conceito por trás do movimento de bem-estar animal. De acordo com esse movimento, animais são criaturas sensíveis e por isso demandam nossas considerações morais. Porém, essas considerações não devem ser tantas que impeçam sua apropriação e exploração. Deriva daí que animais, de acordo com esse movimento, devem ser protegidos contra o sofrimento considerado desnecessário, podendo ser explorados e inclusive mortos, se isso for considerado necessário. E “necessidade” aqui entenda-se o que for conveniente para a espécie superior, o ser humano.

Para contornar os possíveis dilemas morais relacionados ao abate de animais para consumo, o movimento de bem-estar animal procura dissociar o animal enquanto ser senciente, da carne enquanto alimento. Assim, por “carne” entende-se apenas o alimento derivado de mamíferos, sendo a carne derivada de aves e peixes simplesmente “frango” e “peixe”. Galinhas e peixes podem, em muitas situações, serem mesmo considerados como não-animais, para propósito de alimentação.

Consumidores são levados a não associar os pedaços de carne talhados que adquirem nos açougues com os animais vivos dos quais estes se originaram. Entre o abate e o consumo de carne há toda uma série de pequenas operações espaciais que tendem a obscurecer o momento exato em que o animal passa a se tornar um alimento, e tanto o animal quanto o produto final tendem a ser dissociados do processo de abate em si.

De maneira geral, no ato da aquisição de carne, o consumidor não presencia o abate do animal, comprando somente as peças que pouco o fazem lembrar os animais vivos . O mercado de carne tende a assegurar que a ligação entre a carne e os animais de onde ela deriva não seja tão clara na mente do consumidor. Caso essa ligação fosse clara, haveria uma maior tendência dentro da população à abstenção de carnes.

Mesmo nos casos onde o consumidor insiste em associar a carne ao abate de animais, o bem-estarismo fornece o conforto e até a garantia de que sob determinada técnica de criação e abate, o animal não sofre. É o contra-senso do “abate humanitário” e da “carne de animais felizes”.

O consumidor ludibriado pela propaganda bemestarista tende a considerar os animais em duas grandes categorias: Animais de consumo e animais que devem gozar de direitos. Os animais de consumo são aqueles que foram criados com o propósito de serem explorados e os demais animais que não interessam a esse sistema de exploração devem ter seus direitos protegidos por todos.

Com efeito, animais abatidos para consumo humano são tão sensíveis quanto os animais explorados para pele, caça, torturados em rodeios, circos ou rinhas, não importando para que fim tenham sido criados; da mesma forma, não existe base científica para se determinar que a dor sofrida por mamíferos tenha maior intensidade do que a sentida por aves ou peixes.

A flagrante recusa em associar-se o cadáver processado do animal ao animal vivo, ou a exploração de animais para consumo com o desrespeito aos direitos animais, se constitui, na maioria das vezes, em um processo ativo, onde o indivíduo bloqueia o raciocínio lógico, preferindo uma dissociação “forçada” em troca da satisfação pessoal de saborear a carne. Quando contrastados com os fatos, freqüentemente o consumidor diz não querer saber ou recorre a uma reação agressiva.

Valor nutricional da carne

Em termos nutricionais, a carne é constituída basicamente de gorduras e proteínas, sendo também considerada boa fonte de ferro, zinco, selênio e vitaminas do complexo B. É, porém, um alimento deficiente no que diz respeito a fibras e carboidrato e inferior aos vegetais em relação à maioria dos minerais e vitaminas.

O consumo de carne e a saúde humana

Por ser um alimento rico em gorduras e proteínas e pobre em fibras, carboidratos complexos e antioxidantes, a carne está associada a uma grande variedade de doenças, tais como diabetes, arteriosclerose, reumatismo, hipertensão, osteoporose, anemias, doenças cardíacas, doenças renais, doenças respiratórias, derrame, esclerose múltipla, alguns tipos de cânceres, como o câncer de cólon e de mama, e obesidade.

Mesmo as chamadas “carnes brancas”, cujo consumo popularmente é associado a hábitos mais saudáveis, estão associadas à ocorrência dessas doenças. Embora a maioria das carnes brancas sejam mais pobres em gorduras, a incidência de algumas dessas doenças não está associada apenas ao seu excesso de gorduras, mas também de proteínas.

O frango, por exemplo, tem maior quantidade de proteínas do que a carne de vaca ou de bode. O consumo excessivo de proteínas está associado á maior incidência de diabetes, reumatismo, osteoporose, anemias, doenças renais, derrame e câncer de cólon.

Consumidores de carne frequentemente necessitam realizar correções em sua dieta, diminuindo de tempos em tempos seu aporte de calorias, restringindo o consumo de determinados alimentos e recorrendo a medicamentos. Vegetarianos, por outro lado, raramente necessitam recorrer a tais correções, pois sua dieta está mais em acordo com o preconizado pelas recomendações dietéticas diárias..

Da abstenção de carne ao vegetarianismo verdadeiro

A abstenção de carne é frequentemente o primeiro passo em direção ao vegetarianismo. Esse primeiro passo, o protovegetarianismo, no entanto, não deve ser entendido como uma finalidade em si mesmo. Sejam quais forem as razões que levem uma pessoa a abster-se de carne, esses mesmos motivos devem levá-la a buscar a abstenção, também, de outros produtos de origem animal.

Sabe-se hoje que nem todas as pessoas que se abstém do consumo de alguma ou de qualquer carne pretendem, algum dia, tornarem-se vegetarianas. Muitos dos consumidores podem estar se abstendo do consumo de carne vermelha ou de peças inteiras de carne, substituindo esta pelo consumo de carne moída (que pouco lembra o animal morto) ou por peixes e frango, animais considerados mais saudáveis e menos sensíveis. Ou então aumentando seu consumo de ovos, leite e derivados, por não serem alimentos derivados diretamente da morte de animais.

Com frequência, indivíduos que realizam tais substituições crêem já haverem adotado o vegetarianismo, considerando o frango, o peixe, os ovos e o leite como alimentos “vegetarianos puros”. O consumo de carne vermelha estaria, desta maneira, tendo um rápido declínio, enquanto estaria aumentando a popularidade do consumo de aves, peixe, carneiro ou alimentos derivados de leite.

A ética que envolve o vegetarianismo, por outro lado, reside na abstenção não apenas de carnes, mas de todo e qualquer produto que derive da exploração animal. A carne, sendo tecido animal, é mais facilmente associada à exploração animal e por isso com frequência é o primeiro item a ser abolido. No entanto, o leite, os ovos, o mel e todos os demais produtos de origem animal são derivados de sistemas de exploração tão ou mais cruéis que a carne, e dessa maneira devem ser também abolidos de nossa dieta.