Daniel B. LOURENÇO. Direito dos Animais: fundamentação e novas perspectivas. Sérgio Antônio Fabris Editor. 566 páginas.
A obra do acadêmico do Direito, Daniel Lourenço, é fruto de seu mestrado cuja área de concentração foi “Direito, Estado e Cidadania”. Trata-se de uma obra volumosa, bem escrita, de leitura agradável e instrutiva. Dividida em quatro capítulos compostos com os principais tópicos do debate secular sobre o status moral dos animais não humanos.
A extensa introdução é iniciada com a famosa frase de George Orwell, “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que os outros”. Lourenço coloca em dúvida essa pretensa igualdade de “todos os animais” a partir dos “descentramentos” que a humanidade vem sofrendo nos últimos séculos; primeiro com Copérnico, depois com Darwin e em seguida Marx e Freud. Para o autor, a defesa dos direitos animais é o quinto “descentramento”; a ampliação do círculo moral humano para incluir os animais é o novo “abalo” no antropocentrismo. Abalo que inicia com o Grupo de Oxford na década de 1970. Lourenço destaca a criação do termo especismo e os desdobramentos teóricos e práticos a partir de então, como, por exemplo, a crescente adesão de importantes universidades que inauguraram cadeiras de “Animal Law” e “Animal Rights”. Por fim o conceito de “direito” como sinônimo de “humanidade” é questionado pelo autor.
O primeiro capítulo intitulado “O homem e o mundo natural: as premissas culturais do especismo” tem quase trezentas páginas de uma interessantíssima história, interdisciplinar, da Filosofia, da Teologia cristã, das Ciências e do Direito. Em ordem cronológica somos conduzidos a entender os pilares do especismo e da oposição a ele dos pensadores originários gregos à fascinante teoria evolucionista darwiniana. Lourenço ressalta novamente que “o propósito deste capítulo é eminentemente histórico, possuindo especial enfoque na questão da relação do ser humano com a natureza, e, correlatamente, nas concepções a que denominamos “visões de mundo” ou “sistemas de pensamento”, referentes às noções de “humanidade” e de “pessoa”. Pretende demonstrar que os limites do nosso entendimento do que vem a ser humanidade nunca foram e sequer são tão óbvios ou mesmo universais”.
Ao apresentar a problemática na Grécia Antiga uma teoria é ressaltada, é a “Grande Cadeia do Ser”. No embalo da crítica feita ao antropocentrismo teleológico que teria seu início com Sócrates, passado por Platão e ganhando sua representação máxima na filosofia aristotélica. Quanto aos romanos, podemos ver que a dicotomia pessoa/coisa, tão cara ao Direito Romano, ainda é base de diversos sistemas jurídicos contemporâneos. Caminhando para a tradição judaico-cristã: bíblia e o conceito de alma. Dentro da tradição cristã o destaque será dado à doutrina agostiniana e a filosofia tomista, sem deixar de fora a Reforma Protestante.
No bloco oposto ao teocentrismo, ao entrar na Era Moderna, Lourenço traz dados interessantíssimos que vão da Renascença passando pelo racionalismo clássico e o mecanicismo cartesiano. Desse período duas seções chamam particular atenção, uma chamada “objetos do ódio”, onde vemos como os animais eram tidos como a representação do mal na Terra. Aterrorizar os animais era diversão para a elite, e o mesmo passou a ser para as classes mais pobres que viam nessa prática uma forma de vingança contra o sofrimento que passavam nessa opressão de classe. O rico massacra o pobre e o pobre massacra os animais. Lourenço ilustra esse trecho com o famoso caso do grande massacre de gatos na rua Saint-Séverim. A outra seção chamada “despersonalização” é fundamental para a compreensão total da obra. Dedicada ao racismo e sua base especista. A forma como os colonizadores europeus – britânicos, holandeses, espanhóis… – denominavam os povos por eles dominados como “bestas”. Os de pele negra como “macacos”, enfim, eram enquadrados numa categoria “sub-humana”. Durante toda Era Moderna ao início da Contemporânea, políticos, teólogos, juristas, cientista, artistas, contribuíram com a legitimação da despersonalização.
Na esteira de Keith Thomas, Lourenço conclui:
“A hierarquia artificialmente criada entre os animais justificava e reforçava a hierarquia entre os homens […] o racismo e o especismo são faces de uma mesma moeda. Possuem, pois, motivação de ordem prática, qual seja a de justificar a manutenção de vantagens e privilégios de uma determinada categoria, dita dominadora, sobre as demais”.
Em seguida o autor abordará o contratualismo de Thomas Hobbes, John Locke, e Jean-Jacques Rousseau, assim como o Iluminismo de Voltaire e de Kant. Este último voltará a ser objeto de reflexão no capítulo segundo no tópico das “teorias indiretas”. No período conhecido como Era Vitoriana, vemos a passagem da coisificação dos animais – com relatos de extrema crueldade como algo comum e natural – ao surgimento de novas sensibilidades para com os animais, ou como dirá o autor em outra seção, um “tímido alargamento moral”, findando a magnífica e libertadora teoria darwiniana da evolução.
Após uma longa introdução histórica, chegamos ao segundo capítulo, chamado “Entre o formalismo e a realidade ética”, que se divide entre teorias indiretas e teorias diretas. Na primeira seção, somos apresentados à teoria da opressão e a estratégia de inferiorização, onde todas as formas de opressão são apresentadas como interligadas e tendo como origem comum o poder econômico. Lourenço propõe que os animais não humanos sejam incluídos também nos “grupos oprimidos”, e acompanhando o raciocínio de Marjorie Spiegel em The Dreaded Comparison, diz que: “a estratégia de despersonalização serviu para colocar o escravo na condição análoga ao do animal não humano. Nas sociedades escravagistas, as mesmas práticas usadas para controlar animais, tais como a castração, amarração, a mutilação e o encarceramento, foram também utilizados para controlá-los”. E assim temos a analogia da opressão sobre o índio nativo americanoe os judeus, esses últimos perseguidos há séculos, tendo seu auge no holocausto, eram chamados por celebridades alemãs – como Lutero, Hegel, Willian II, Richard Wagner – de “porcos”, “insetos”, “cachorros loucos”, “bacilos”, com o intuitode inferiorização. Após citar a famosa passagem de Isaac Bashevis Singer, que diz que em relação aos animais todas as pessoas são nazistas e que o mundo para os animais é uma eterna Treblinka, Lourenço dirá que “a propaganda nazista de demonização dos judeus e as correlatas práticas de extermínio tornam inevitável à comparação com a realidade dos animais”. É mais que perceptível que a teoria da opressão também pode ser aplicada no caso dos animais não humanos.
Na seção seguinte, após citar a divisão das teorias éticas no trato aos animais como, 1. Abolicionismo, 2. Reformistas/protecionistas, e 3. Conservadoras (onde a primeira defende deveres diretos, e as outras duas, deveres indiretos), Daniel Lourenço faz uma sucinta apresentação dos conceitos de “deveres indiretos”, “transbordamento moral” e “casos marginais”. Ao entrar nas teorias indiretas, o autor fará uma breve recapitulação de dois pilares do especismo: Aristóteles e a posição religiosa. O contratualismo do pensador canadense contemporâneo Jan Naverson será a terceira teoria indireta analisada, e a quarta será o contratualismo de John Rawls através de seu “véu da ignorância”. Com a ajuda de vários teóricos, Lourenço mostrará as falhas na teoria de Rawls, e enfatizará: “As teorias indiretas não se sustentam ao sofrer o embate com os “casos marginais” e, ao contrário do que Rawls afirma, a explicação da igualdade seria alterada de forma bastante significativa, já que não haveria garantias de tratamento igual substantivo entre os próprios seres humanos”. E conclui que nenhuma das teorias contratualistas analisadas consegue “incluir os animais no pactum subjectionis, e reconhecer interesses diretos para com eles”.
A penúltima teoria indireta abordada será a ética kantiana. Para Kant somente seres racionais (entende-se homens) são fins em si mesmos, possuindo valor intrínseco, portanto são pessoas ou agentes morais. Os seres irracionais (animais não humanos) não possuem um valor em si mesmos, seu valor é relativo, por isso, os agentes morais, guiados pela lei universal do Imperativo Categórico não têm deveres diretos para com eles. A finalidade dos animais é servir aos humanos, mas nem por isso, deve os humanos tratá-los de forma cruel, pois a prática da barbárie com os “irracionais” levaria a prática com os iguais na posse da razão.
A última teoria indireta apresentada é a das leis bem-estaristas. Segundo o autor, “a concepção bem-estarista e a dos direitos animais partem de premissas completamente distintas”. As leis de proteção animal são, na verdade, para proteger a propriedade de alguns humanos de não serem danificadas por outros humanos. Em tom kantiano, as leis bem-estaristas não vêm os animais como fim em si mesmos, mas como “coisas”, “propriedades” dos humanos que devem ser resguardadas de atos demasiadamente cruéis. Brevemente, Lourenço mostra o tratamento dado aos animais na legislação brasileira e conclui a seção voltando a analogia com a escravidão negra, em especial, a partir do século XVIII, onde “a escravidão sofreu sucessivas regulamentações somadas as já existentes restrições ao abuso da propriedade privada. Estabeleceram-se alguns limites no uso e no tratamento dispensado aos escravos humanos, tal como os designados “estatutos protetivos” o fazem com relação aos animais não humanos. Ambos falham ao não reconhecerem qualquer status moral para os escravos ou para os animais, respectivamente”.
A partir de agora, Lourenço irá tratar de quatro teorias que apregoam deveres diretos para com os animais humanos e não humanos. A primeira delas é denominada por Regan de “Cruelty-kindness view” traduzido por Lourenço de “teoria da crueldade-compaixão”. Segundo essa teoria os animais não humanos passam a ser vistos como “pacientes morais” e devem ser tratados de modo gentil e não cruel. Dentro dela temos o dever positivo de agir gentilmente, de praticar o bem; e o dever negativo, de omissão de ações que possam provocar danos e maus tratos. Vemos que a base dessa teoria é de cunho religioso: “o manejo caridoso dos animais é sugerido como uma virtude cristã”. As religiões orientais como Hinduísmo, Jainismo e Budismo também são citadas e sua apropriação por pensadores alemães como Hegel e Schopenhauer. A seção será concluída com uma contundente crítica a essa ética da compaixão.
A segunda teoria direta é a do teólogo Humphry Primatt. Lourenço segue os passos da filósofa Sônia Felipe ao apresentar de forma resumida vinte e sete teses de Primatt em defesa dos animais baseado na capacidade de sofrer. De forma breve, Henry Salt será lembrado como herdeiro de Primatt, do seu “princípio da coerência” e de sua máxima, “dor é dor” independente da espécie que a sinta.
O utilitarismo clássico de Jeremy Bentham como uma das teorias diretas será analisado de modo crítico por Lourenço. Para tal o autor se fundará em Regan, Francione e Nozick, que apresentam os limites da teoria utilitarista. Por fim, a última teoria dos deveres diretos agraciada pela obra de Daniel Lourenço é o utilitarismo preferencial de Peter Singer, no seu princípio da igual consideração de interesses semelhantes. O autor dedica nada menos que vinte e oito páginas a teoria moral de Singer. Já em sua apresentação do filósofo, em uma nota, vemos o elogio à seriedade de sua construção teórica, assim como a crítica da abertura que a mesma dá ao bem-estarismo. Essa seção pode ser considerada uma excelente introdução à ética animalista de Singer; qual corrente ética está filiado, qual seu fundamento, suas possibilidades práticas e, seus limites levantados por dois de seus críticos.
Enfim, no terceiro capítulo temos “A linguagem dos Direitos”. Em uma curta introdução vemos a distinção entre bem-estarismo e direitos animais, a primeira como legitimadora do status de propriedade/coisa dado aos animais, e a segunda como abolicionista. Na primeira seção, Lourenço fará uma “breve incursão histórica aos direitos animais”. Segundo Richard Ryder, localiza-se no século XVII as primeiras utilizações do vocábulo “direito” se referindo aos animais não humanos. De Thomas Tryon aos herdeiros contemporâneos do Grupo de Oxford, o leitor verá uma lista absurda de autores e obras citadas tratando da atribuição de direitos aos animais. Nesse momento temos um retorno à conceituação de “pessoa” e sua distinção com “ser humano”; uma leitura crítica das teses ecocêntricas, e o posicionamento de filósofos e juristas que desde a década de 1990 já vislumbram que em um futuro próximo os direitos animais se tornarão um fato comum, uma realidade. A seção seguinte é dedicada a “Richard Ryder e o critério da dorência”. Em apenas quatro laudas aprendemos em linhas gerais o que o criador dos termos “especismo” e “dorência” tem a nos oferecer como proposta moral.
Na próxima seção, o autor dissertará sobre a teoria dos direitos animais na obra de Tom Regan, considerado uma das maiores referências no tema. Seus principais conceitos, como: valor inerente, sujeitos-de-uma-vida, princípio do respeito, agentes e pacientes morais; são apresentados. A posição kantiana alargada de Regan recorrendo aos casos marginais, ao recurso à analogia e aos direitos humanos em oposição ao contratualismo e ao utilitarismo é posta de forma clara, assim como as críticas à sua teoria feita por Jamieson, Frey e algumas feministas. Lourenço sintetiza magnificamente bem as respostas de Regan as críticas e conclui pontuando o limite da ética reganiana por defender apenas mamíferos e aves, pois dessa forma, “Regan estaria incidindo no mesmo especismo que tanto procura eliminar, deixando de fora do escopo de sua teoria uma grande quantidade de criaturas”.
Na sequencia somos apresentado à defesa dos animais realizada pelo advogado e professor de Direito, Steve M. Wise. Para Wise, um dos problemas legais que mantêm a escravidão animal é o fato do Direito ter incorporado a falsa barreira que separa animais humanos dos não humanos, dando aos primeiros a qualidade de sujeitos de direito e, os segundos, objetos de direito. Wise recorre aos “casos marginais” para mostrar a contradição no sistema judicial que reconhece fetos, senis, comatosos e pessoas jurídicas como sujeitos de direitos e os animais não. De modo bem sucinto, Lourenço expõe a escala de “autonomia prática” criada por Wise para classificar os animais. A tese de Wise visa lutar pelo “mínimo realizável”, em suas palavras: “advogar direitos em demasia para animais pode levar a que nenhum animal não humano consiga adquiri-los”. Vemos aqui que Wise está longe de ser um abolicionista, e segundo Lourenço, “na tentativa de superar as limitações do sistema judicial no enfrentamento da questão animal, consiste justamente nesse fato a maior fragilidade de sua tese”. A tese de Wise leva ao especismo eletivo.
O último defensor dos direitos animais abordado nesse capítulo é o professor de Direito, Gary Francione. Nessa longa seção, Lourenço inicia discutindo o status de coisa/propriedade dos animais como problema central levantado por Francione. A crítica ao bem-estarismo como ideologia e como leis “protetivas”. No meio da seção, Lourenço abre uma inesperada digressão de oito laudas para expor as reflexões de Peter Singer sobre a experimentação animal. Ao retornar a Francione, o autor diz: “vemos que ele [Francione] corrobora as asserções de Singer, acrescentando mais, que o mesmo ato pode ser aceito ou proibido, dependendo apenas de integrar as instituições de exploração animal enraizadas em nosso meio”. O uso que Francione faz do princípio da igual consideração e suas teses, do direito fundamental do animal não ser tratado como coisa à esquizofrenia moral, fecham a seção.
Por fim, a última seção do terceiro capítulo, e a mais longa de toda obra, tratar-se-á da “Teoria dos Entes Despersonalizados: animais como sujeitos de direitos”. A O autor inicia demonstrando que tanto para as leis brasileiras quanto para a maioria de nossos juristas, os animais não passam de coisas/propriedades. Esse posicionamento inviabiliza aos animais o status de “sujeitos de direitos” ou de “pessoas”. A partir da distinção entre pessoa, sujeito de direitos e ser humano, vemos o embate ente teóricos que advogam o status de pessoa aos grandes primatas e o de entes despersonalizados aos para os outros animais, e os teóricos que enxergam um especismo eletivo nessa defesa de direitos primeiramente aos animais com proximidade genética com os humanos. Uma breve análise do conceito de pessoa na legislação brasileira é levantada conduzindo-nos a uma emblemática conclusão: “nem todo sujeito de direito é pessoa e nem todas as pessoas, para o direito, são seres humanos”. Após levantar a vantagem da teoria dos entes despersonalizados, Lourenço apresentará as três espécies de doutrinas afirmativas: a teoria da vontade, a teoria do interesse e a teoria mista. A seção é concluída com a experiência da impetração do Habeas Corpus em favor da chimpanzé “Suíça”.
O quarto capítulo trata-se das considerações finais. Aqui somos agraciados com belíssimas reflexões de Daniel Lourenço sobre todas as problemáticas levantadas no corpo da obra, tanto no que se refere a sustentação milenar do especismo, quanto a sua abolição. Sua crença de que a mudança de paradigma é possível. A defesa da senciência como critério fundamental na defesa dos direitos animais, da coerente corrente abolicionista em oposição à bem-estarista, e da dieta vegetariana. Lourenço cita uma fábula do filósofo chinês Mêncio, uma passagem de A vida dos animais de Coetze, e se desculpa por ter deixado de fora de seu trabalho muitos autores que desenvolveram reflexões importantes sobre os direitos animais, e conclui sua obra com uma poesia de Ella wheeler Wilcox.
A obra, “Direitos dos Animais: fundamentação e novas perspectivas”, do erudito advogado Daniel Braga Lourenço é, sem sombra de duvidas, leitura obrigatória para todo indivíduo que tem interesse no tema dos direitos animais. Nessa monumental obra – ricamente anotada – pesquisadores acadêmicos, ativistas dos direitos animais, ou mesmo, simpatizantes e curiosos sobre a temática, encontrarão vinte e uma laudas de referências bibliográficas. O tema sério, e urgente, tratado nesse livro é de cunho interdisciplinar e Lourenço passa por diversos campos do conhecimento como a Filosofia, Teologia, Direito, Historia e Ciências, com muita fluidez e leveza.
O leitor que decidir encarar essa obra estará diante da melhor introdução aos direitos animais escrita em língua portuguesa até o momento, e obviamente, terá muito a ganhar com essa leitura.